Isabel Capeloa Gil: "A Ponte" para o DN

Isabel Capeloa Gil

O tempo é de incerteza, mas a falta de aspiração endémica do país, também não ajuda. Uma inflação galopante, a ameaça de um conflito à escala global, a que se somam as alterações climáticas, e as micro-desgraças do dia a dia, parecem apenas demonstrar que, quando a alma é pequena, nada vale a pena. Compensamos o desânimo com o refúgio à sombra do manto acolhedor do Estado, que transforma magros apoios em alavancas perenes de um sistema social, político e económico reconciliado com a mediocridade. E que torna esses apoios justamente estruturantes da atividade económica num país onde, há décadas, nada se passa sem o beneplácito do poder político. A maior conquista deste sistema endémico é, podemos dizê-lo, uma colonização do ânimo e da subsequente capacidade de aspirar.

Porque a literatura sempre esteve um passo à frente, permitam-me recordar um pequeno conto de Franz Kafka, escrito em 1916/17, chamado justamente A Ponte. Ora esta ponte, construída sobre um abismo, é uma edificação esquecida, por onde ninguém passa. E se ninguém por lá passa, então está em causa a sua própria natureza de ponte. Apesar de tudo, ainda que seja irrelevante e ninguém a atravesse, uma ponte só deixa de ser ponte quando cai. Um dia, um homem de bengala, aproxima-se da edificação, bate no solo com a bengala e salta sobre o empedrado. A ponte adormecida, que toda a vida se havia mantido imóvel a olhar fixamente para o riacho que passava por baixo de si, sentiu uma enorme curiosidade de ver quem assim perturbava o seu descanso. Afinal, quem é que assim ousava reclamar a sua natureza de ponte. Movida pela curiosidade, vira-se para olhar para cima. Ora, onde já se viu uma ponte virar-se? Mal se virou, inevitavelmente caiu. E foi justamente ao cair que realizou a missão para que fora edificada.

Artigo completo disponível no Diário de Notícias.