Na semana que em Portugal começou com a entrega a Bruxelas do PRR e terminou com as controvérsias sobre a celebração de Abril, assistimos a dois gestos simbólicos que marcam uma viragem histórica. O primeiro, a declaração do genocídio arménio por Joe Biden, associando os Estados Unidos ao pequeno grupo de 30 países que reconhecem os atos de violência, iniciados a 24 de abril de 1915 com a prisão e execução de 250 intelectuais e líderes arménios, e cometidos pelo governo dos Jovens Turcos. Em Portugal, a Assembleia da República reconheceu em 24 de abril de 2019 este ato de genocídio que levou à morte de 1,5 milhões de arménios.
O gesto de Biden contrasta com o tacticismo dos seus antecessores, preocupados com a manutenção da aliança estratégica com a Turquia. Sobretudo destaca-se pela assunção de uma política de decência que se distingue da Realpolitik, orientando-se para um posicionamento internacional que assume a defesa de valores que se querem justificadamente universais, como o respeito pela dignidade humana, o direito à autodeterminação, a garantia do primado da lei e da justiça. Alguns dirão que é um gesto tardio, um ritual interesseiro de outras políticas. Honrar a memória das vítimas, todavia, nunca é ato vão nem inútil. 106 anos após os massacres, o valor político da declaração reside na constatação da inevitável imbricação das histórias de violência do passado. Reconhecer a violência dos outros articula-se com a necessária denúncia da violência própria e com o compromisso político e histórico para com a memória das vítimas como recordação do que como comunidade internacional devemos impedir de voltar a acontecer.
O segundo gesto é português e não menos simbólico. O discurso de Marcelo Rebelo de Sousa no dia 25 de abril marca uma viragem no curso da construção do Portugal democrático, trazendo para a arena política um passado presente e controverso. Vilipendiado pelos porteiros do lado correto da história, aqueles que exigem o moralismo acrítico e simplista e o preferem à complexidade de compreender, em situação, os vários modos dos tempos que passaram, o discurso do Presidente assume no plano político o debate que a academia, as artes e a literatura têm vindo a fazer desde os anos 80. E ao fazê-lo cria incisão institucional, ao assumir que da comunidade que é Portugal fazem parte todos os que viveram em lados diferentes da história. E sobretudo que é preciso debatê-la: a guerra, que motivou abril, verbalizando as diferentes instâncias em que afetou gerações, lugares e instituições. Foi, na verdade, um ato político de natureza transformacional, em que o Presidente afirmou com "densidade personalista" a sua implicação nas complexidades deste passado que não deixa de passar.
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