Criou-se em Portugal a curiosa perceção de que qualquer iniciativa privada, porque pode visar o lucro, constitui um ato de esbulho. Pelo contrário, a coisa pública é gerida por profissionais impolutos e a ação do Estado é sempre benéfica, porque quer o bem de todos, sem distinguir nenhuns. Em tempos de pandemia, louvou-se a força do Estado e a derrota do "mercado". Transformados em caixas de ressonância de agendas políticas, os media projetam estas narrativas que apelam ao gosto, sempre simplista, da vox populi.
Não tenho nada contra manifestações do sentimento popular. Na verdade, são um sismógrafo da ação política e económica do país. O seu espaço de projeção revela a capacidade da sociedade civil acomodar o direito a ter voz, a gerir o dissenso, antecipando e, por vezes, resolvendo tensões latentes. O "popular" entrevistado para uma peça noticiosa expressa toda uma estrutura de sentimento, que se encena como pura e autêntica perante as câmaras. Mas nem sempre é assim, ou porventura, é cada vez menos assim.
A pureza do sentimento popular foi sempre um mito, habilmente utilizado pelos discursos políticos e pelas suas máquinas de produzir sentido, da mesma forma que a volonté generale de matriz iluminista manifesta com mais evidência o gosto da elite do que a alma do povo. Em tempos de acelerada circulação de narrativas e num país estruturalmente pobre, onde as elites sempre se apoiaram, e sempre se submeteram à tutela do Estado, investir, e arriscar, transformar e daí gerar valor, levantam suspeita. Porque o Estado tem por natureza uma pulsão dominante e os que dele dependem raramente perdoam voos autonómicos e sobretudo de sucesso. A isto acresce a inveja estrutural, que já Camões assinala nos seus Lusíadas. É certo que nas últimas semanas, as audições parlamentares ao Novo Banco têm dado ao país um infeliz espetáculo de gestores privados incapazes e mal formados. Mas nem aqui esta imagem divulgada pelas televisões faz jus a todos os outros que fazem o país avançar com honestidade e competência.
Leia o artigo completo aqui.